terça-feira, 16 de outubro de 2018


quando os dias pegam gosto de papel
olha acima do horizonte,
mas de verdade, e abre teu olhar
e vais poder de repente sair do chão

a Via-Láctea é a cordilheira do céu
são as estalactites da noite
(quando ela fecha a fresta de luz do luar)
tocando os edifícios em noite de apagão

eu talvez não reconheça de longe um avião ou Saturno
mal e mal os contornos galácticos no fundão noturno
mesmo assim eu sei que estão por lá
e é isto que pode às vezes sublimar





milonga do velho

eu gosto de tomar um chimarrão
enquanto eu uso o tempo pra pensar
na decisão mais certa pra tomar

vou ajeitando a erva com a mão
uma cisma nova me faz ver
que o pior tempo pra perder
é atrasar o próprio coração
e achar que era melhor a escravidão,
que não era torpe a ditadura
– desmando de tanto “patrão” –
e engolir quanta mentira pura!

nisso, eu olho a chuva na janela
vejo o clarão, escuito o trovão
há tempos que eu já tava à espera
dessa muy franca Revelação





sete cidades

Quero compreender quantos pedaços
tem este panorama desmontado
com meus sapatos, meu cansaço
até seu último passo

Já ouvi dizer que são sete círculos
como qualquer inferno que arde
onde os metros são mais quadrados
feitos de tantos mais cubículos

Costumo contar em sete léguas
as distâncias maiores que a vontade
mas quero ouvir a voz de um século
congelada no concreto da cidade
andando por onde vá seu chão
– sem ver se é meu ou dela o tédio –
de máscara contra a poluição
intoxicante das ondas de rádio
vazando incessantes pelas cloacas
e latrinas eletro-eletrônicas

e com sorte escutar o murmúrio
de um córrego enterrado
a sete palmos de asfalto

ou talvez um grito em sussurro
de alguém encerrado
a sete andares lá no alto

domingo, 1 de outubro de 2017

a aldeia tem uma doença grave
de quem ignora ou comemora
no meio da sala um cadáver
mas acusam de  bandido quem chora
pelo brado de um covarde com um revólver
que retumba chumbo na carne suave
de um país velho sem História

como se desorientássemos uma nave
é louco quem na nau dos loucos mora
e talvez a boa metade que se salve
chore mares por sua louca vitória
mares que tantos fantasmas devolvem
corpos e pensamentos instáveis
...todos tão mortos de memórias

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

cortina de fumaça sobre o sol que escapa
pelas horas, pelos dias, no fim da rua
nas esquinas da cidade turva
em qualquer direção ela é seu próprio mapa

o sol não seria igual sem sua fuligem
ou Florianópolis sem essa carapaça
a cara dos que passam já se esbrua
exatamente na velocidade em que surgem
nesse mundo em preto-e-branco
não aparecem roupas coloridas
olhos verdes, castanhos
nem profundas perspectivas
meu espírito eu espanco
já sem nenhuma confiança
que se ilumine franco
e me tire pra uma dança

homens são pretos ou brancos
mulheres têm som de tamancos
e crianças por enquanto... 
são crianças
o carvão é preto e o gelo, branco
e cor-de-cinza, a esperança

é preciso aguentar o tranco
o país cai no barranco
o futuro é opaco e tanto

a vida em preto-e-branco
eu sentado nesse banco
ela mesma passa...
                                     em branco

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Basta tirar o que está sobrando da pedra
é o simples trabalho de lhe aparar as arestas
são sentenças que encerram questão mais profunda
que a discussão da falta ou excesso de modéstia

Tu podes querer dizer o que é bom e o que não presta
Mas vais deixar as pistas de quem és a quem enxerga
Juízo, bom juízo, enganos ou mentiras
desdigo o que foi dito ¿Que verdade seja dita?
Mas ao cara que talha com as mãos honestas
às vezes se revelam os segredos da matéria

Moisés, de Michelângelo