quinta-feira, 28 de outubro de 2021
faço um solo de assobio
(como pra lembrar que eu existo)
como o vento faz nos fios
dos alambrados, da rede elétrica
e onde quer que haja frestas
me transpasso por lugares arredios
atravesso pela vida incerta
eu corro a dez, Ela anda a mil
mas não fico num só lugar
que em algum dia já existiu
pois não há desejo de ficar
que resista à marcha universal,
nesse fenômeno essencial,
eu rumo pra onde possa chegar
e não para onde estava o lar
mesmo que das saudades me refaço
eu ainda assim me despedaço
feito um guapuruvu doente
mas também são passos os percalços
todo mundo, do mundo toma laço
que a ninguém fica indiferente
quinta-feira, 10 de junho de 2021
andar na Terra é andar no gume
de uma lâmina de liso corte
que na velocidade de seu lume
faz o limite entre vida-e-morte
ninguém passa por aqui impune
por mais que fôssemos inocentes
não creio que é isso o que nos une
(e acaso é unida a espécie gente?)
nem que iguale o ser humano
o mais perto disso é o depois,
onde até o tempo se foi
o fim é o que há de mais mundano...
e sua chegada ano após ano
que um pouco nos mata
por cada um que nos aparta
e os outros maltrata quando nos leva
no começo é estranho
a vida soa ingrata
por que ela dá pra deixar sem nada?
pois é isso o que ela nos reserva...
um sentimento de engano,
de nunca mais pisar a relva
de esperar que desça o pano
e a vilã nos envolva em sua treva
caminhos se desenrolam e assim avançam
um pouquinho mais fácil e mais alcançam
porque a sina do destino é ser fugaz...
há tempos tudo já deixou de ser lilás
mesmo depois que as pretas nuvens se esparsam
em cada coisa existe sempre um “mas”
e cada caso é especial, como todos os demais
dos que não se apagam enquanto ainda se passam
considera, amiga, nos deixar pra trás
considera, agora, buscar o que te apraz
categóricas brigas não vão haver mais
nessa hora vai se aplacar o que era quente
vai fundo encontrar a tua paz!
coisas boas nos aguardam, é seguir em frente
o que tá ruim vai acabar, o tempo é sagaz
e numa manhã inspirada decorada de corais
vai sentir que se curou tudo de repente

quarta-feira, 10 de março de 2021
já disse o sábio economista
que só tem preço o que é fruto
do trabalho e os produtos
gerados das coisas possuídas
mas eu vejo que ainda além
do portento da produção
o que põe preço também
é a carga em destruição
o karma das guerras por ambição
encruadas na riqueza dos bens
todos os diamantes são falsos
só valem o que foi combinado!
pra tornar a coisa mais fácil:
valem o que está no contrato
entre um homem e uma mulher
nada mais que vazio do status
brilham tanto quanto qualquer
caco de vidro ou cristal de quartzo
mas o quanto custam em sangue
saturado nos cofres do mundo?
o ouro conta seu peso em chumbo,
o envenenamento em mercúrio
das sangas, dos rios e dos mangues
onde eu bebo, mijo e mergulho
eu valho menos do que produzo
não valho nem essa água poluída
tão descartável quanto nossas vidas
irmão, eu já não fico confuso
somos úteis, mas também intrusos
que o diga minha saúde puída
terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
sorrindo grande e cruzando os olhares
é o que surge onde nós estamos juntos
ajudando-nos a estar melhor no mundo
moça do riso frouxo e do olhar firme
eu bem sei que fiz essa escolha
mas desejar tua estima não tem que ser um crime
o vento vai virar a velha folha
ainda quero ser teu amigo
talvez como um inço num campo de trigo
de um sentimento que começou diferente
mas sem ti eu também prossigo
com minhas ausências e saudades comigo
se andar lado a lado não é mais pra a gente
então vê que não sou tão surpreendente
pra que assim ainda possamos estar próximos
mas se pra isso me achas pouco e que não posso
tudo bem, eu ainda sou um cara resiliente

especialmente, irmão, o mais esperado
a cada começo que há no meio
mesmo o chão firme na vida é instável
cada novo passo muda o que foi dado
de nada vale sentir receio
e decidir parar não altera o grande fluxo
que empurra sempre pro passado o futuro
foi de um futuro que tudo veio
nessa matéria fluida, há de haver o que busco
a felicidade em seu modelo inseguro
ainda vou encontrar o veio
não existe uma estrada principal
que conduza tudo pelo mundo afora
cada êxito na existência é só parcial
o fim sempre vem antes da hora
sexta-feira, 11 de dezembro de 2020
por não achar que iam valer
os erros que podem conter
as palavras que andei juntando
eu somente ia entoando
e o Fabício foi anotando...
mas como o parafuso puxa
a imperfeição do encaixe
a tal carpintaria se ajusta
pois entende que faz parte
dos desafios de sua praxe
eu tinha que contar isso,
que eu não sou bom discípulo
da antiga marca espinela
maestro cuja existência
fiquei sabendo por tabela
o que tenho feito, portanto
é quase uma consequência,
quiçá seja só uma sequela
do primor do velho Caetano
e tantos outros veteranos
paisanos, ingleses, castelhanos
de calças jeans e apreços urbanos
de quem a voz está mais perto
ou mesmo vindo demais longe
eu falo do alemão Humberto
e também do vermêio Rose
pois o serpeio instiga a mágica
remexe as fórmulas manjadas
amolece corações e práticas
são os poetas e poetizas
unidos em raças mistas
no enlevo das payadas
onde as fôrmas são refeitas
bem providas de emoções
e a tradição é reinventada
audições e vozes muy afeitas
aos anseios das gerações
vamos acochambrando métricas
ponteando guitarras elétricas
minha payada tem rédeas soltas
porque ideias são revôltas
no chamado do pensamento
quando inspirado eu me sento
à sombra de um cinamomo
ou à chama dos galhos e ramos
e os meus versos quase brancos
vou dispersando aí anônimo
(que é sinônimo de todo mundo)
e faço da expressão meu escudo
La Payada
Vito Campanella- óleo sobre tela