sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

payador anônimo 

por não achar que iam valer
os erros que podem conter
as palavras que andei juntando
eu somente ia entoando
e o Fabício foi anotando...
mas como o parafuso puxa
a imperfeição do encaixe
a tal carpintaria se ajusta
pois entende que faz parte
dos desafios de sua praxe

eu tinha que contar isso,
que eu não sou bom discípulo
da antiga marca espinela
maestro cuja existência
fiquei sabendo por tabela
o que tenho feito, portanto
é quase uma consequência,
quiçá seja só uma sequela
do primor do velho Caetano
e tantos outros veteranos

paisanos, ingleses, castelhanos
de calças jeans e apreços urbanos
de quem a voz está mais perto
ou mesmo vindo demais longe
eu falo do alemão Humberto
e também do vermêio Rose
pois o serpeio instiga a mágica
remexe as fórmulas manjadas
amolece corações e práticas

são os poetas e poetizas
unidos em raças mistas
no enlevo das payadas
onde as fôrmas são refeitas
bem providas de emoções
e a tradição é reinventada
audições e vozes muy afeitas
aos anseios das gerações
vamos acochambrando métricas
ponteando guitarras elétricas

minha payada tem rédeas soltas
porque ideias são revôltas
no chamado do pensamento
quando inspirado eu me sento
à sombra de um cinamomo
ou à chama dos galhos e ramos
e os meus versos quase brancos
vou dispersando aí anônimo
(que é sinônimo de todo mundo)
e faço da expressão meu escudo


La Payada
Vito Campanella- óleo sobre tela

*Vicente Espinel, **Jayme Caetano Braun, ***Humberto Gessinger, ****Axl Rose
gestando cérebros
de gente já nascida
entre cubículos
de vidro e eucatex
em ventres de prédios
de contextura insípida
labirintos sucessivos
(estamos em xeque!)
materializados em aquários de ar
casualmente a nos transformar
nesses peixes de duas patas
metade ciborgues telepatas

somos virtualmente mutantes
mas do lado real das telas
e das páginas sufocantes
não seria um aviso de alerta?

sou um robozinho pela cidade
para minha própria facilidade
(ninguém falou em felicidade)
em meio à esta estranha trama 
a quarta dimensão é a socioespacial
numa placa de circuitos magistral
feita de material e carne humana
reiniciada uma vez por semana

no ônibus, metrô, catraca no edifício
como tudo ficou tão fácil pra ser difícil?
eu procuro a paz nas esquinas
ainda quero ver se ela nos contagia
afinal, dividimos a mesma sina
nas catarses controladas distribuídas
pela desesperança vasta das rotinas

eu procuro o antídoto pelas ruas
e mal descubro alguma ternura...
comandas, cartões, assinaturas:
atestados de que a vida é dura
carimbos invisíveis nas nossas figuras
que carregamos como emblemas
fica tudo registrado no sistema:
esse grande mar de algemas!
um acontecido

quem quiser que ouça
não é causo de valentia
de pelear com onça
antes eu até escondia...

mas achei que era até egoísmo
guardar comigo o acontecido
por isso que eu perdi o medo
imagina se ficassem em segredo
as descobertas,os eventos extraordinários
pensa se nunca nos tivessem falado
das aparições dos bichos raros
e do Espírito Santo e do que é sagrado

então eu faço em forma de verso
sem nunca ter feito, de vereda
porque se eu só contasse a tal feita
não iam me levar tanto a sério

e na verdade poucos me levam
por eu ser anciano até relevam
o causo incomum deste índio velho
que eu vivi e que eu mesmo revelo

mas sem render muitas histórias
só tenho pra contar esse mistério
de como ele chegou numa nave de prata
lá do céu como se fosse uma estrada

ela baixou numa clareira da mata
se acomodou que nem uma rocha
deitando em cima daquelas patas
com seu motor e farol como tochas

dali saiu um sujeito miúdo
de olhos grandes de gato no escuro
com jeito de quem conhece o futuro
sem dizer palavra, se lhe entendia tudo

no más, sem falar nem fazer gesto
pra matar a sede me pediu água pura
andei até a sanga que tinha perto
acompanhado a passo da criatura

e lá tinha um remanso
tomou água que se molhou
como pelo visto, se cansou
convidei ele pro meu rancho,

o vivente comunicou,“vai que eu sigo”
um quilômetro caminhou junto comigo
o outro, botei ele na garupa do ombro
depois que levou das pernas o segundo tombo

chegando, sentei ele já dormido
numa cadeira na varanda
eu sentei bem ali na outra,
daí fiquei tomando conta

tinha passado uma hora pelo jeito
quando abriu os olhos pretos
e já engatamos uma prosa
só que, como eu disse, silenciosa


me contou da sua terra
e também das suas técnicas
conversamos das guerras
concordei que têm solução
mas tem os que não querem
uns, que a paz não preferem
por alguma indizível razão
e nisso tudo fechamos questão


e assim se fez a amizade
em coisa de uma tarde
foi ali num final de mês de setembro
começando a primavera, eu me lembro

se despediu sem um aperto de mãos
mas, estranho! pareceu até que era
um forte abraço de quebrar costela
entre dois velhos irmãos

de noite se foi no meio de um capão

saiu do alto do arvoredo, uma centelha
foi subindo, se mesclando com o fundão
senti o silêncio no final de uma canção

e deixou atrás dele a alvorada, sem vê-la 

eu também duvidava se não...
se não me deixasse este medalhão
gravado um Centauro e no reverso uma estrela